quarta-feira, 17 de outubro de 2007

COM TEXTO - Sinal da Cruz

É sem snobismo ou coqueteria que digo que viajar nos transportes públicos é novidade para mim. Só agora, aqui no Porto, se tornaram necessários às minhas deslocações diárias.

Andar de metro ou autocarro, tal como andar a pé, pode ser encarado como um exercício de observação.

Eu gosto de me exercitar assim, dar azo a uma imaginação volúvel, inconsequente porque inocente. Mantenho-me atenta e ocupada. É uma forma de passar o tempo no “pára-arranca” do tráfego citadino.

De regresso a casa, depois de passar a tarde em compras, entrei no autocarro, sentei-me e abri os olhos à realidade quotidiana que se desenrola paralela à minha.

A Igreja da Lapa é um edifício imponente; ao passar, é quase impossível não desviar o rosto para lhe ver a face de pedra. Hoje, mais do que a fachada, observei um gesto - um sinal da cruz - naturalmente traçado ao peito da senhora sentada no banco oposto ao meu. Isto desvendou-me algo sobre aquele alguém, anónimo, pelo qual não nutro mais qualquer interesse, mas que naquele momento se me revelou, muito brevemente.

É este o exercício – observar subtilmente, sem curiosidade prolongada, sem promiscuidade, mas com perspicácia e, sobretudo, sensibilidade; é mostrar ser-se um passageiro vulgar, ainda que dotado de percepção.

Colecciono estas pequenas pérolas do quotidiano. O resultado é um sorriso e uma pequena história para contar ao jantar.

A minha colega é quem agora beneficia dos meus relatos originais. Ela diz que não lhe acontecem destas coisas, só a mim. Ora, parece-me que é tudo uma questão de disposição para observar (sem qualquer gozo maldoso ou riso mesquinho); é deslocar a atenção de onde habitualmente a centramos (em nós próprios) e focá-la algures, em redor, na paisagem rica, quer seja natural, construída ou humana.

1 comentário:

Carolina Almeida disse...

Fabuloso instantâneo da vida, retratado numa escrita ainda mais fabulosa.

Adorei :)