sábado, 15 de março de 2008

COM TEXTO - Castelos

O Castelo é um cenário do imaginário colectivo.


Habitado por princesas-desalento, governado por reis tiranos. Lugar encantado e feliz, fortaleza inexpugnável, dominada por dragões.

Sou um arquitecto livre para recortar as ameias e ditar a altura das torres.

Nas nuvens ou na areia, temos o nosso Castelo particular, refúgio seguro da Imaginação.




terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

COM TEXTO - A Metáfora da Garrafa

Tenho medo do mar.


Cresci e tenho medo do mar.


Há nele uma imensidão transcendente, uma volubilidade permanente, tão contrária às ideias de terra, de construir e de ficar.


Tenho medo do mar.


Vi partir e não voltar. O mar levou e por lá deixou.


Não posso descer à praia sem me sentir mais órfã. Há na metafísica do horizonte a certidão da minha perda, tão definitiva! Definitiva e sem enterro. Não é final que se lavre em pedra, que se faça terra.


Venho chorar na fímbria do mar. É o mais perto que agora lhe chego, sem que isso me traga qualquer sossego.


O próprio desassossego do mar me enfurece. A fúria passa e fica a angústia de se ser praia e não onda, de não poder ir deste àquele fim de mar, encontrar o ponto de tudo o que já é nada e era meu.


Por me querer lançar na procura do que irremediavelmente perdi e haver mãos e braços que me ancoraram, fiquei presa à terra, à ilha que hoje sou.


Tentou-me a ideia de lançar ao mar a garrafa da reconciliação, do definitivo adeus. Nunca lhe encontrei o tom; para se escrever assim é preciso um tom, nenhum se não aquele que não encontrei até hoje. Mas a metáfora ficou.


É mais do que uma carta de despedida, mais do que um devaneio de criança, uma promessa de tesouro perdido, uma declaração de amor ao portador. Qualquer forma que lhe queiramos dar, a ideia prevalece. Existe toda uma dimensão simbólica criada pelo imaginário mais ou menos colectivo. Uma expectativa esperançada no porvir. A aprendizagem da paciência. Saber que se lançou um pedaço de nós no oceano. Esperar não se ser náufrago o resto da vida. A descoberta de um novo horizonte, de um novo limite. Haver alguém que nos recolha na praia. Apresentar-se na distância.


É chegar tão longe!

sábado, 8 de dezembro de 2007

COM TEXTO - O menino que já não acredita no Pai Natal

Existem lugares que nos agradam particularmente, nos quais nos sentimos bem e confortáveis. Encontrei um assim, aqui no Porto, estrategicamente localizado, à beira da faculdade.

Nesta pequena Confeitaria é-se bem recebido, a comida é saborosa, da sopa de couve branca aos rissóis de espinafres, passando pelos queques de noz e bolachas húngaras. E há sempre um frenesim de pedidos e serviços. As mesas são pequeninas e, por isso, convidativas não só ao lanche, como também ao estudo individual. É uma bênção, um espaço assim, no qual tanto se pode encontrar conhecidos para almoçar, como isolarmo-nos do exterior.

A proximidade das mesas pode proporcionar situações como esta que intitulei de “O menino que já não acredita no Pai Natal”.

O panorama era o do costume – casa cheia. Do burburinho destacava-se um conjunto de vozes barulhentas, que, por acaso, vinham da mesa ao lado. A minha atenção foi incontornavelmente despertada pela resposta audível do miúdo a um telefonema para o seu telemóvel.

O contexto era o de alguém que lhe ligava a propósito das prendas de Natal, ao que o rapaz respondeu com convicção que queria um ringue e uns bonecos de wrestling. Até aqui, normal - toda a criança tem desejos e faz pedidos, numa primeira instância ao atencioso Pai Natal e depois aos pais, não menos atenciosos.

Nem sei com que idade se costuma deixar cair o mito, ou com que idade me apercebi da metáfora. Acho que aos poucos, essa fantasia passou a ser sustentada para meu irmão, não para mim. (Não vou defender aqui a minha teoria de que as crianças devem saber, desde logo, da real proveniência dos presentes, mesmo que aos adultos pareça uma crueldade não permitir a ilusão, tanto que assim podem surgir alguns dissabores vindos do colégio, quando a criança esclarecida afirma perante outras que o Pai Natal não existe.)

A questão está em que qualquer fantasia já fazia parte de um passado distante para aquele miúdo pouco crescido. Não foi a enumeração das prendas esperadas, mas sim o modo como foi tratado o assunto – como um dado adquirido, quase uma exigência que se crê certa de ver satisfeita – que me chocou. E sabia os preços de cabeça: 90€ para o ringue e outros 100€ para os bonecos novos (os do Natal passado já não eram suficientemente bons, estes sim, porque articulados!) Soou-me vagamente exorbitante, mas será, porventura, relativo.

Quando voltou ao éclair de chocolate, desinteressei-me. Mas o quadro permaneceu vivo o tempo de terminar a refeição e me embrenhar no que tinha levado para ler o resto do tempo.

Este acaba por ser o exemplo específico de uma realidade geral. Formamos pequenos consumidores, aos quais o termo “Consoada” dirá menos do que “prendas”. Não que ache mau trocar presentes; é tão bom dar como receber. Deverá ser já raro o caso daqueles que festejam o Natal de uma forma puramente espiritual, tanto que o Natal me parece cada vez menos ligado à original dimensão religiosa. As vidas materializaram-se e damos (mais ou menos) valor ao que se pode colocar dentro de uma caixa.

Mas sejamos razoáveis e vejamos, por entre os montes de laços e papéis amarrotados, o outro lado da Festa, que para muitos será o mote para uma pontual reunião da família a uma mesa bem posta, para uma visita adiada a um amigo ou para a sintonia com um espírito especial.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

POÉTICA - Cavalo Alado


Com que asas voará o cavalo alado
Se lhas dizem impossiveis?


Versos - José Álvaro Afonso
Imagem - Daniel Chang

domingo, 18 de novembro de 2007

COM TEXTO - Epitáfio ao Piano de Belmonte

Todos os Pianos deviam morrer de velhos, de idade indefinida. Quando a madrepérola das teclas descasca, as cordas afrouxam e se enrolam em nós estranhos, a madeira estala e abre frinchas... e só o Tempo os toca.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007



Eu hoje comprei um livro, pão e água.


quinta-feira, 8 de novembro de 2007

COM TEXTO - Praça do Sapateiro

É a melhor hora de luz. O final da tarde que ainda não é anoitecer. O ar é leve e fácil de respirar.
Não vou de autocarro.
Contorno uma Praça meio ajardinada.

"Vê por onde andas".

Sentado no seu pequeno banco, trabalha sob o olhar sobranceiro de outro alguém de fato escuro, mãos nos bolsos. O sapateiro velho, de boina azul celeste, pincela um sapato azul, talvez preto, escuro, todavia. O par aguarda com outros pares e ímpares alinhados na berma do canteiro meio verde.

"Não te metas por maus caminhos".

Aquele alguém de fato preto levou os moucassins a quem os cuidasse, lhes puxasse o brilho ao couro. A cada pincelada, um conselho:
"Os atalhos gastam mais sola".

Cobrará mais, o sapateiro, pela graxa ou pelos conselhos avisados?
Estaria o homem de fato preto mais necessitado de sapatos novos ou de algum tipo de orientação?

Com o quadro a germinar na cabeça, atravesso um vermelho que oportunamente se fez verde.
Ao chegar, o sol que ainda dura, acende reflexos mornos no cabelo despenteado.
Estou satisfeita e moderadamente feliz.
Ponho o ponto final ao mesmo tempo que junto as migalhas do pão que comprei no caminho.



(Este quotidiano estava esquecido no meio de papeis vários, porque ainda sou daquelas pessoas que gostam de escrever à mão)